quarta-feira, 12 de abril de 2017

Alcoólicos Anônimos: autossuficiente!?

70 anos de A.A. no Brasil

Nossa 7ª Tradição começa com uma sugestão aparentemente simples: "Todos os grupos de A.A. deverão ser absolutamente autossuficientes, rejeitando quaisquer doações de fora." Essa tradução, presente nas edições brasileiras sob o controle da JUNAAB (Junta de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos do Brasil), com permissão da AAWS (Alcoholics Anonymous World Services, Inc.), carrega consigo uma palavra que, ao longo dos anos, tem gerado discussões e mal-entendidos: "autossuficiência".

Mas o que realmente significa ser autossuficiente? E, mais especificamente, "absolutamente autossuficiente"? A tradução conjuga o verbo "dever" no futuro, sugerindo uma meta a ser alcançada, enquanto o original em inglês, "ought to be self-supporting", indica uma condição presente, já neste instante, e não mais adiante! Essa pequena diferença temporal pode parecer insignificante, mas reflete uma contradição profunda no significado do termo.

Autossuficiência, em seu sentido mais literal, significa bastar-se a si mesmo. No contexto da 7ª Tradição, ela se refere ao sustento material dos grupos, que deve vir exclusivamente dos próprios recursos de seus membros, sem depender de doações externas, que, consequentemente, esbarra diretamente nas nossas relações humanas com profissionais contempladas na 8ª Tradição, e, indiretamente, na 9ª Tradição. No entanto, essa ideia de autossuficiência, quando mal interpretada, pode se tornar uma armadilha perigosa. Ela sugere uma independência que vai em desencontro aos princípios espirituais de A.A., que pregam justamente o contrário: a dependência de um Deus, na forma em que O concebíamos e o apoio mútuo entre os membros.
"Absolutamente" o advérbio ratifica a recomendação de recusa de quaisquer donativos materiais, mesmo aquelas doações que simulam concessões inofensivas.
Vejamos um exemplo prático. Imagine um grupo de A.A. que aluga um espaço em uma igreja católica por um valor simbólico, digamos, R$ 50,00 mensais, para realizar suas reuniões uma vez por semana. À primeira vista, pode parecer uma solução prática e inofensiva. No entanto, essa prática esbarra em questões delicadas. Primeiro, porque não há um contrato que defina claramente os direitos e deveres das partes envolvidas. Segundo, porque essa proximidade com instituições religiosas pode criar barreiras para aqueles que não se identificam com a fé católica ou com qualquer outra religião. O ideal seria que os grupos de A.A. mantivessem uma distância saudável de igrejas e outras instituições religiosas, garantindo que o programa seja acolhedor para todos, independentemente de suas crenças ou descrenças. ─ Diz a profecia, que: “A verdadeira liderança de A.A. se encontra do lado fora”. ─ Torço para que eu veja essa profecia se realizar ainda nesta vida.

Aqui, é importante ressaltar que o problema não está no valor pago, mas na falta de um contrato e na possibilidade de interpretações equivocadas. A 7ª Tradição não proíbe doações, ─ ou melhor, contribuições ─, mas recomenda que os grupos sejam "absolutamente autossustentáveis", ou seja, que dependam apenas de seus próprios recursos, sem criar vínculos que possam comprometer sua independência e neutralidade.

E é justamente aqui que a tradução da palavra "self-supporting" como "autossuficiência" se mostra inadequada. No original, o termo "self-supporting" significa "autossustentável", ou seja, capaz de se manter com seus próprios recursos. Já "autossuficiência" carrega uma conotação de independência total, uma sutil oportunidade ou brecha que descamba para tendência a seguir nesse nosso artigo, algo que vai contra os princípios de A.A., que pregam a prudência e a dependência de um Deus, na forma em que O concebemos.

No entanto, a má compreensão desse princípio tem levado a práticas ainda mais preocupantes. Aqui na Área 01, no Rio de Janeiro, por exemplo, alguns grupos têm levado a ideia de autossuficiência ao pé da letra, adquirindo propriedades por meio de compra ou construção de um imóvel. Essa tendência, embora bem-intencionada, é um erro colossal. Nossos princípios recomendam maiores cuidados com propriedade, prestígio e poder, melhor seria nos abster desse tipo de empreendimento, e os motivos são óbvios: quem será o dono do imóvel? Em nome de qual membro do grupo ficará registrado? Afinal, somos todos donos, mas não há como dividir legalmente uma propriedade entre todos os membros de um grupo. 
Em A.A., costumamos dizer que a 7ª Tradição é o momento em que o material se une ao espiritual, com o espiritual prevalecendo. A autossustentação financeira dos grupos não é um fim em si mesma, mas um meio para garantir que possamos cumprir nossa missão primordial: levar a mensagem de recuperação ao alcoólico que ainda sofre.
A 5ª Tradição, que nos lembra; mantenhamos o foco em nossa missão primordial. Acaba sendo relegada ao último plano. Em vez de nos concentrarmos em levar a mensagem de recuperação, nos vemos envolvidos em disputas por propriedades, questões legais e administrativas que nada têm a ver com o propósito de um Grupo. Nosso sustento deve vir de contribuições voluntárias e anônimas, e, preferencialmente, estabelecendo contratos de aluguel para nossos espaços de recuperação. Que por sinal, uma atribuição que deveria ser destinada aos ELSs ou Intergrupais em favor dos Grupos.

Caro leitor, caso ainda não tenha se dado por satisfeito; Bill W., cofundador de A.A., foi cuidadoso ao escolher suas palavras. Ele, desejou comunicar-se conosco, evitando, o máximo possível, as dúvidas que as palavras possam promover para o bom funcionamento de toda essa engenharia que Alcoólicos Anônimos verdadeiramente é. No texto do primeiro passo, ele usa o termo "self-sufficiency" (autossuficiência) para descrever como o álcool nos esvazia de toda autossuficiência. Ou seja, ele reconhece que a autossuficiência é uma ilusão para nós, alcoólicos. No entanto, nas Tradições, ele opta por "self-supporting" (autossustentável), um termo que reflete a necessidade de os grupos se manterem financeiramente independentes, mas sempre contando com o apoio mútuo e a orientação de um Deus Amantíssimo. 

Portanto, a correção da tradução da 7ª Tradição não é uma mera questão semântica, mas uma necessidade para preservar a integridade do programa. Onde se lê "autossuficiência", deveria estar escrito "autossustentável", como no original. Essa mudança não apenas evitaria mal-entendidos, mas também reforçaria a ideia de que, em A.A., dependemos uns dos outros e de um Poder Superior, nunca de nós mesmos.
Mesmo que a 7a Tradição só se refira a questões materiais, e pudesse caber a palavra "autossuficiência" para esse aspecto, fica claro, para mim, que nada é mais inapropriado. Na verdade, a autossuficiência para nós, alcoólicos, é perniciosa e vai de encontro aos nossos princípios espirituais.
Só por agora, a autossuficiência, para nós, alcoólicos, é totalmente perniciosa. Ela nos leva a acreditar que podemos vencer a dependência do álcool sozinhos, ignorando a necessidade da ajuda mútua e externa. Pretendemos não mais buscá-la em nossas vidas, individuais ou coletivas, e, por isso mesmo, é que devemos abolir qualquer menção inadequada em nossos textos ou registros. Nos é revelado, por A.A., que existe uma forma de dependência nunca por nós experimentada, e quanto mais dependentes de Deus, mais livres nos tornamos. Esse paradoxo é a essência do programa de A.A., e é por isso que a correção da tradução da 7ª Tradição é tão importante. Este mesmo princípio se estende e é verificado nas nossas relações de serviços com os nossos custódios não alcoólicos, profissionais e amigos de A.A., funcionários, que cumprem seus papéis de grande valor, e, sobretudo, de Deus.

Agora, o que realmente o nosso cofundador quis nos oferecer como princípio em nossas tradições e especialmente nesta? 
─ Para mim, resultado precioso do exercício da humildade junto a responsabilidade, desejando que a 7ª Tradição se manifeste com total sabedoria e força, dizendo:
“Todos os grupos de A.A. devem ser absolutamente AUTOSSUSTENTÁVEIS, rejeitando quaisquer doações de fora."
Estabelecendo por princípio em A.A. a virtude da pobreza, para nós, pobreza coletiva. Algo tão temido e mal compreendido por todos nesse mundo. Ao abraçarmos tal virtude coletivamente — mantendo apenas o necessário para nossa existência e longevidade —, nos libertamos das amarras do materialismo e nos aproximamos de um ideal em nossa irmandade: crescer espiritualmente e ajudar outros a encontrar a sobriedade.

Que lição! 
Não acumulamos, só precisamos de fundo de reserva prudente, ou seja, só o necessário.

Um viva bem sonoro aos 70 anos de A.A no Brasil. Recuperando vidas! 

4 comentários:

  1. Que haja mente aberta para tal correção sendo a mesma necessária.

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  2. Muito bom o texto. Reflete sobre dois temas importantes: a questão das traduções e sobre os conceitos de autossuficiência x autossustentável. Curioso a.expressão." pobreza coletiva" na meça do Capital financeiro.

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  3. Importante dizer, o termo autosustentável nos últimos anos ganhou uma acepção mais moderna. Antes se limitava ao próprio sustento mediante, somente, aos fatores econômicos. Atualmente as questões de produção estão envolvidas na sua significação também. Mas nos anos 40, não!

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  4. Por isso que eu sempre sugeri nas propostas para a Conferência que as traduções sejam feitas por empresas de tradução, para não acontecer esse tipo de erro de tradução em nossas literaturas.

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Sejam todos bem-vindos com suas colaborações de qualquer natureza, excetuando tudo que infrinja as regras do bem proceder. Lembramos sempre que nenhum dos seus membros fala "em nome de" A.A., mas, no máximo, "de" A.A. As opiniões dos alcoólicos recuperados baseiam-se sempre na propriedade de suas experiências pessoais.